Breve nota sobre “symphony of sorrows”, de Miguel Ramalho para a CNB

Um corpo liberta-se do grupo, num prelúdio que se desenha denso, enigmático, profundo na sua linguagem não-verbal. Tentar pôr em palavras esse momento em que Almudena Maldonado dá início a symphony of sorrows, do coreógrafo e Bailarino Principal da CNB, Miguel Ramalho, é ficar sempre aquém do que a vista pode alcançar. Sobre a música de Henryk Górecki (1933-2010), “symphony of sorrowful songs”, que há muito Miguel Ramalho desejava coreografar, esta obra propõe – ou expõe, porque possivelmente sempre lá estiveram – diferentes camadas de gestos e emoções que ao longo dela podemos viver. Sofrimento, perda, dor, desespero, mas também esperança, o poder do colectivo enquanto força de superação, enquanto solução necessária para a sobrevivência, na constatação do que é apenas possível se no encontro com o outro nos revirmos a nós próprios. No colectivo encontrar o espaço que nos permite sermos vulneráveis, sem que isso nos limite ou condene, que nos permite revelar-nos no âmago daquilo que somos, sem que isso nos coloque num espectro definido por outros, onde simplesmente podemos ser.  

Symphony of sorrows, coreografia Miguel Ramalho, com música de Henryk Górecki, interpretada pela Companhia Nacional de Bailado, Teatro Camões, Lisboa; © Hugo David/ CNB 2022

Aquando da sua criação, em 2020, ainda não era claro para Miguel Ramalho o significado desta obra, que só mais tarde, quando montada, se lhe foi revelando, como quem espera que a tempestade passe para poder vislumbrar a pouco e pouco a paisagem – ou o que resta dela. Apresentada pela primeira vez após o primeiro confinamento (a CNB era então dirigida por Sofia Campos), symphony of sorrows é agora revisitada no Teatro Camões, com mais bailarinos em palco, a pedido do atual Diretor Artístico da CNB, Carlos Prado, o que lhe confere uma nova força mobilizadora e um novo impacto do gesto colectivo e das emoções. E é em camada sobre camada – de duetos como o de Leonor de Jesus e Gonçalo Andrade em primeiro plano ou o de Inês Ferrer e João Costa em pano de fundo, em solos como o de Marta Sobreira, o de Francisco Sebastião ou o de Miguel Esteves, entre tantos outros – que lemos diferentes subtilezas coreográficas, para então logo nos surpreender, qual pintura viva, um corpo colectivo que viaja, que se deixa levar numa atmosfera ora tempestiva ora franca, para no final nos dizer que depois da tempestade vem essa tranquilidade pela qual a condição humana não se rege, mas que incessantemente procura. E, por isso, ver symphony of sorrows uma segunda, terceira, quarta vez é sempre ver symphony of sorrows pela primeira vez. Haverá sempre um novo detalhe a observar, uma nova leitura a fazer, um novo mar a desbravar. E ao atravessarmos a porta daquela sala, assim, de fora – para dentro, percebemos que a dança, como a vida, nos impele a questionar de que sorte somos feitos.

Symphony of sorrows, coreografia Miguel Ramalho, com música de Henryk Górecki, desenho de luz de Cristina Piedade e interpretação da Companhia Nacional de Bailado, é apresentada no programa Cherkaoui/Ramalho, de 24 de Março a 3 de Abril, no Teatro Camões, em Lisboa.


Maria Palma Teixeira é fundadora do Les Corps Dansants. Iniciou-se na escrita sobre dança em 2011, para o Arte-Factos, onde colaborou até 2016. Trabalha desde 2015 em media, comunicação e marketing e desde Outubro de 2020 no Gabinete de Comunicação e Marketing da Companhia Nacional de Bailado. Saber mais

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