Para criar novos sonhos, é preciso dormir. É com esta ideia que o barítono Ruben Drole conclui o texto de abertura de Nachtträume (“sonho nocturno”, traduzindo à letra), a criação de Marcos Morau feita à medida para o Ballet de Zurique, que terá a sua última apresentação esta terça-feira, dia 15 de Novembro, na Ópera de Zurique, Suíça.
Tendo como ponto de partida A Mesa Verde, do coreógrafo alemão Kurt Jooss (estreada em 1932, em Paris), Morau lança em palco uma reflexão sobre o poder e o poder que a ambição (desmedida) dele tem sobre nós. Enquanto Jooss se inspirou numa dança macabra, do período medieval, para reflectir sobre a ideia de morte, no rescaldo da I Guerra Mundial, com tudo o que isso implica – o debate, a especulação, os refugiados, Morau traça uma narrativa complexa e aberta a reflexões múltiplas, para debater a ideia de poder nos dias de hoje e começa logo por Ruben Drole, figura central, de género fluído, que é a personificação dele mesmo. Ama-me. / Ama-me como os sonhos amam a noite, / Ama-me como Alice amou o País das Maravilhas. De vestido negro e brilhante e coroa na cabeça, depois de um monólogo demorado e cadenciado, antes de subir o pano, Drole lança o repto: deixa-me guiar-te — através desta noite que agora começa.

Uma peça que trabalha coreografia, música (de Carla Aguilar), dramaturgia (de Isarel Solà e Michael Küster), cenografia (de Max Glaenzel) e imagem como um só, Nachtträume tem tanto de paródia, e daquilo que é aparentemente superficial, como de profundo e intrigante. Vinte e sete bailarinos em palco convidam-nos a entrar numa viagem inebriante, num sonho que nos guia por um jogo de sedução, manipulação e angústia. Vinte e sete bailarinos-marionetas, numa estética algo vanguardista-anos-20 algo pop (camisa branca e calções pretos conjugam com meias com ligas e cabelos playmobil) reúnem-se à volta de uma mesa. Alguns de mala no braço, prontos para debitar ideias, trocar palavreado, provocar. Serão eles os decisores políticos. Mas ao contrário de A Mesa Verde, de Jooss, esta mesa é redonda. Uma enorme mesa redonda sobre uma plataforma giratória. Através do movimento caricatural de Morau, o coreógrafo satiriza estas figuras políticas, repetitivas nos seus movimentos, que discutem, apontam o dedo, mas no final do dia andam à roda e à roda das mesmas ideias.
Surgem em seguida os empresários, homens de cabeça perdida (literalmente), no seu frenesim diário, ocupados, iluminados. Surge ainda o homem-automata, o homem tornado máquina, com uma câmara orwelliana ao invés de cabeça, a quem ninguém escapa. Neste sonho, todos somos observados e observadores, vítimas e opressores, veado e caçador (como menciona Drole, no texto de abertura).
É um marco como toda a coreografia evoca uma estética/ideia/statement genderless (sem género). Num espetáculo que dá prioridade ao todo, ao grupo, onde todos os bailarinos estão caracterizados de forma semelhante, o dueto de Leroy Mokgatle e Jan Casier cria uma nuance e textura marcantes.

Estamos perante um espetáculo em forma de matrioska, que revela uma revolução dentro de outra revolução. Uma revolução que não é de agora, mas que continuará, porventura, a ser necessária. Importará, pois, não deixarmos de questionar onde estamos, para onde vamos, de que são feitas as tomadas de decisão ou porque fazemos o que fazemos. Mas se somos confrontados com uma mensagem atual, ela faz parte de um percurso que nos fez chegar aqui. Não será por acaso que a A Mesa Verde continua a criar leituras à luz dos dias de hoje e, por isso, a reinventar-se (a Companhia Nacional de Bailado repôs, por exemplo, esta peça o ano passado, em Lisboa e no Porto). Deve ser por isso que Drole adverte: Se sonhas com uma revolução, desiste! As pessoas nunca irão erguer-se./ Esqueceram-se de como fazê-lo. Será ainda possível uma revolução — de espírito, intelectual, social, política? Mas voltemos ao palco e a Nachtträume. A mesa redonda desaparece. Ficam as cadeiras. Um jogo frenético de cadeiras — cadeiras Bentwood, modelo 14, inventadas por Michael Thonet, nos anos 1850, uma verdadeira revolução então no design, que chegou a ganhar Medalha de Ouro na Exposição Universal de Paris, em 1867 — leva-nos aos cabarés, com ich weiss nicht, zu werm ichgehöre, de Friedrich Hollaender/ Robert Liebmann, em pano de fundo, aos loucos anos 20, às garçonnes, às noites inebriantes, a sonhos perdidos. Mas também possivelmente a um qualquer café, promotor da troca de ideias, raíz do sindicalismo. Em que direção vamos agora? Para a esquerda? Não, para a direita, ou para a esquerda novamente. Este jogo exaustivo de cadeiras, onde os bailarinos balançam de uma ponta para a outra do palco, dá por fim lugar à libertação. Neste momento vem-me à cabeça José Régio: Não sei para onde vou,/ Não sei para onde vou/ Sei que não vou por aí!
Nesta libertação coletiva, os bailarinos dirigem-se ao proscénio para cantar juntos Wie lange noch? (“Por quanto tempo mais?”), de Kurt Weill. Um ato de libertação, de tomada de poder no coletivo, que então queima a rainha-poder, sobre as cadeiras amontoadas, qual bruxa em plena Inquisição.

Dez ou mais minutos de palmas confirmam que fomos impactados por uma peça vibrante e é o reconhecimento de que, ao décimo espetáculo, que apenas aconteceu com o esforço das várias substituições de bailarinos e de toda a equipa, este sonho nocturno nos deixará despertos… até voltarmos a dormir.
Nachtträume, de Marcos Morau para o Ballet de Zurique, com música de Clara Aguilar, cenografia de Max Glaenzel, figurinos de Silvia Delagneau, desenho de luz de Martin Gebhardt, video de Tieni Burkhalter, dramaturgia de Israel Solà e Michaek Kuster, estreou a 30 de Setembro e sobe ao palco da Ópera de Zurique, Suíça, até dia 15 de Novembro. Ficha completa aqui.