Originalmente publicada em arte-factos.net, a 28 de Junho de 2012.
Vi depois, numa rocha, uma cruz,
E o teu barco negro dançava na luz
Vi teu braço acenando, entre as velas já soltas
Dizem as velhas da praia, que não voltas:São loucas! São loucas
Eu sei, meu amor,
Que nem chegaste a partir,
Pois tudo, em meu redor,
Me diz qu’estás sempre comigoNo vento que lança areia nos vidros;
Na água que canta, no fogo mortiço;
No calor do leito, nos bancos vazios;
Dentro do meu peito, estás sempre comigo.“Barco Negro”, David Mourão-Ferreira
Já correu o mundo, este espectáculo da Companhia de Dança Quorum Ballet que chega amanhã, dia 29, e no sábado, dia 30, ao Teatro Camões, em Lisboa. Correr o Fado, com direcção artística e coreografia de Daniel Cardoso, tem na sua génese uma das maiores expressões da cultura portuguesa – com toda a simbologia que carrega e nos remete para a nossa história – mas actualiza-a, trá-la para os dias de hoje, desmistificando a sua conotação saudosista e melancólica.
Falámos com Daniel Cardoso para percebermos um pouco melhor por que caminhos se corre o Fado.
Em 2009 o Quorum Ballet preparou uma pequena peça, aquando de um congresso na Casa da Música no Porto. Correr o Fado tomou, assim, a sua primeira forma, sem se imaginar que dois anos mais tarde se tornaria na grande produção que foi apresentada, em Fevereiro, no Teatro Municipal de Bragança. Foi no Coliseu dos Recreios que o espectáculo – ainda uma peça de vinte e cinco minutos – despertou a atenção de companhias de dança internacionais, desde a Dinamarca, à Holanda e E.U.A., tendo um grande sucesso e, como tal, Daniel Cardoso, propôs-se a desenvolver a coreografia, explorando estes caminhos do Fado. O resultado final foi uma peça mais elaborada, de hora e meia.
O poema acima citado, cantado na voz de Amália Rodrigues, foi o que despertou a coreografia, mas não a confinou às suas margens líricas. Procurou-se incluir não só canções de outras gerações de fadistas, como Mariza e Mafalda Arnauth, entre outros, como também aglutinar aquilo que as suas letras transmitem e projectá-las numa peça essencialmente abstracta. No fundo, a ideia é “não seguir as letras durante a peça inteira”, mas antes deixar espaço para cada espectador interpretar este espectáculo ou experimentá-lo de uma maneira mais pessoal, como a sua imaginação e as suas vivências o ditarem. “Correr o Fado” não tem portanto uma narrativa, mas não é por isso que deixa de ter um fio condutor ou uma coerência coreográfica, que culminam em “nuances da nossa música, do Fado e do seu percurso, da nossa história”, dos nossos costumes, enfim, da nossa cultura.
Como não poderia deixar de ser numa companhia que se preza pelos detalhes, a própria cenografia tem uma carga muito simbólica: um padrão em acrílico, que nos remete para as fachadas de azulejos tipicamente portuguesas, e tanques de água, caracterizando, obviamente, um país que desbravou mares e descobriu novos mundos. Houve também uma preocupação com os figurinos, concebidos pela dupla portuguesa Storytailors, e aqui a ideia passou, mais uma vez, por “desconstruir o fato tradicional”, exagerando nas suas proporções, fugindo do preto, muito associado ao luto e à saudade, e adaptando-o aos movimentos e à sua musicalidade.
Se na altura em que o Fado surge, na Lisboa popular oitocentista, as suas letras eram na maioria anónimas, associadas a uma tradição oral, é na voz de Amália que se começa a cantar uma poesia “erudita”, mais requintada, muito apoiada pelo compositor e seu conselheiro musical Alain Oulman, não nos esqueçamos. Por coincidência, no ano em que “Correr o Fado” estreia, o Fado é aclamado Património Imaterial da Humanidade, valorizando-se assim «Um tesouro que fala de Portugal, da sua cultura, da sua língua, dos seus poetas, mas que também tem muito de universal nos sentimentos que evoca: a dor, o ciúme, a solidão, o amor.» (in Público, 27-11-2011). Talvez seja por esta universalidade de sentimentos, que ninguém fica indiferente a este espectáculo por onde quer que ele passe: Sérvia, China e Dinamarca, sempre com lotação esgotada, e agora, de volta à sua terra de origem, Lisboa.
Expectativas altas para esta noite dançada pela Melhor Companhia de Dança Contemporânea (premiada pelo Portugal Dance Awards, em 2009). Caso para dizer,“Silêncio, que se vai dançar o Fado”!