“O Swan Lake Solo é como um requiem para nós”, diz a coreógrafa e bailarina ucraniana (radicada em França) Olga Dukhovnaya, no passado Dia Mundial da Dança, 29 de Abril, numa palestra do Festival Spring Forward, em Dublin, antes da sua actuação nessa noite, no The Complex. A frase atinge-nos como um murro no estômago. Como é que O Lago dos Cisnes, um dos bailados clássicos mais célebres de sempre, se pode tornar num “requiem”?
Marius Petipa e Tchaikovsky não imaginariam que a sua obra estreada em 1877, em Moscovo, ganharia tamanha carga política ao ser usado como uma arma do regime para encobrir as notícias em tempos de crise na União Soviética. As estações de televisão exibiam-no em simultâneo e em loop, durante dias a fio, quando caía um líder do regime, desde Leonid Brezhnev a Mikhail Gorbatchov, conta-nos Dukhovnaya. “O Lago dos Cisnes não tem em França o mesmo significado que tem na Rússia”, reforça.
A pandemia provocada pelo COVID-19 e a invasão russa da Ucrânia deixaram Dukhovnaya sem alternativa se não a de recusar o convite para criar a sua versão d’ O Lago dos Cisnes, com 32 bailarinos, para a inauguração do novo museu de arte contemporânea GES-2, em Moscovo. O processo criativo levou-a a criar um solo, com a colaboração do compositor Anton Svetlichny. A intérprete? Ela própria.
À partida, parece difícil imaginar como é que uma única bailarina, com um maillot, calças de lantejoulas e ténis negros consegue encapsular todo um corpo de baile de cisnes, para além de estar num palco completamente despido de qualquer adereço; mas ele rapidamente se expande através da força e expressividade dos movimentos de Dukhovnaya. Ao contrário do ballet clássico, que procura a verticalidade dos corpos e piruetas sem esforço visível, este cisne não tem qualquer intenção de desafiar a gravidade e esconder a sua respiração pesada. Braços arqueados abaixo do umbigo, perna direita à frente da esquerda, pés virados para fora, en dehors, começa a saltar ao som de Thousand, de Moby. Alguns membros da plateia soltam risos, ao reconhecerem de imediato a linguagem clássica num contraste irónico e propositado com um corpo que assume a sua natural pre-disposição para… o cansaço.
Entra então a música de Tchaikovsky, ora na versão original, ora numa versão distorcida, electro, que nos traz o que aparenta ser um lado caricatural deste clássico re-imaginado. Até que a música pára e, após recuperar o fôlego, Olga Dukhovnaya cumprimenta a plateia e começa a explicar o porquê desta peça. Se a mensagem não fosse tão crucial para a sua contextualização, ela teria quebrado o ritmo da mesma. Pelo contrário, reforçou a sua pertinência e simbolismo. “Em França, ninguém sabe que O Lago dos Cisnes está associado à queda do regime soviético. Quando a guerra chegou, em Fevereiro de 2022, acrescentei um texto à peça em que contextualizo o que esta obra representa. É também um texto através do qual justifico o facto de estar a dançar uma peça russa. A única razão para eu continuar a dançar o Swan Lake Solo é o facto de este bailado simbolizar o fim de um regime e a morte do seu líder.”, explica numa entrevista ao site francês Ma Culture, tal como explica no espectáculo.
Não nos enganemos: neste Swan Lake Solo, o príncipe (Alexis Hedouin, num fato-de-treino cinza) não é uma figura perdidamente apaixonada, mas antes uma antítese do bailarino romântico, aqui de corpo e rosto inexpressivos, que chega apenas para apoiar a sua Odette/Odille em saltos incessantes. Até que invertem os papéis, visivelmente cansados.
Swan Lake Solo desconstrói de forma despretenciosa e audaz o bailado clássico, retirando toda a sua carapaça romântica para deixar apenas vísivel a crueza do movimento e a verdade dos seus protagonistas. Parece que, afinal, não são seres transcendentes, não são “anjos de Apolo”, são carne e osso, num mundo coberto de incertezas.
*A fotografia de destaque deste artigo é da autoria de ©Nicolas Joubard.

“Swan Lake Solo is like a requiem for us,” said Ukrainian (France-based) choreographer and dancer Olga Dukhovnaya, speaking at Dance Ireland in Dublin on Saturday 29 April, before her performance at The Complex later that day. It hits us like a punch in the gut. How could one of the most celebrated classical ballets of all time become a ‘requiem’?
Marius Petipa and Tchaikovsky could not have imagined that their work, premiered in 1877 in Moscow, would gain such a political charge by being used as a weapon of the regime to cover up the news in times of crisis in the Soviet Union. Television stations would show it simultaneously and on a loop for days on end when a regime leader fell, from Leonid Brezhnev to Mikhail Gorbatchov, Dukhovnaya tells us. “Swan Lake doesn’t have the same significance in France as it does in Russia,” she adds.
The pandemic caused by COVID-19 and the Russian invasion of Ukraine left Dukhovnaya with no alternative but to refuse an invitation to create her version of Swan Lake, with 32 dancers, for the inauguration of the new contemporary art museum GES-2 in Moscow. The creative process led her to create a solo, with the collaboration of the composer Anton Svetlichny. The performer? She herself.
At first glance, it seems hard to imagine how a single ballerina, wearing a leotard, sequined trousers and black trainers manages to encapsulate an entire corps de ballet, full of swans, being on an empty stage; but it quickly expands through the strength and expressiveness of Dukhovnaya’s movements. Unlike classical ballet, which seeks the verticality of bodies and pirouettes without visible effort, this swan has no intention of defying gravity and hiding her heavy breathing. Arms arched below the navel, right leg in front of the other, feet turned outwards, en dehors, she begins to jump to the sound of Moby’s Thousand. Some members of the audience burst out laughing, immediately recognising the classical language in an ironic and purposeful contrast to a body that assumes its natural pre-disposition towards… tiredness.
It is when Tchaikovsky’s music comes on, sometimes in the original version, sometimes in a distorted, electro version, which brings us what appears to be a caricatured side of this re-imagined classic. Until the music stops and, after catching her breath, Olga Dukhovnaya greets the audience and begins to explain the reason behind this piece. Had the message not been so crucial to its contextualisation, it would have broken the rhythm of the piece. On the contrary, it reinforced its relevance and symbolism. “In France, nobody knows that Swan Lake is associated with the fall of the USSR. When the war came, in February 2022, I added a text to the play in which I contextualise what this work represents. It is also a text through which I justify the fact that I am dancing a Russian piece. The only reason for me to continue dancing the Swan Lake Solo is the fact that this ballet symbolises the end of a regime and the death of its leader”, she explains in an interview to the French website Ma Culture, as she explains in the performance.
Do not be fooled: in this Swan Lake Solo, the prince (Alexis Hedouin, in a grey tracksuit) is not a hopeless romantic, but rather the antithesis of the ballet dancer; with an inexpressive body and face, he arrives only to support his Odette/Odille in her incessant leaps. Until they reverse roles, visibly tired.
Swan Lake Solo deconstructs in an unpretentious and audacious way the classical ballet, removing all its romantic shell to leave only visible the rawness of the movement and the truth of its protagonists. It seems that, after all, they are not transcendent beings, they are not “Apollo’s angels”, they are flesh and blood, in a world covered in uncertainty.
*The featured picture in this article is by ©Nicolas Joubard.