Do terreno e do transcendente: sobre “O Lago dos Cisnes”, pelo Ballet de Kiev, no Teatro Tivoli BBVA

A 9 de Março de 2022, a editora de Moscovo Novaya Gazeta lançava uma edição que se tornou símbolo da resistência daqueles que, por força das circunstâncias, se viram sujeitos a uma guerra que não subscreveram. Na capa, que ilustrava o pas-de-quatre de O Lago dos Cisnes com uma explosão nuclear em pano de fundo, lia-se “Uma cópia da Novaya, criada em conformidade com todas as regras do código penal alterado da Rússia”. A capa fazia referência a tensões nucleares, ao bailado clássico que era transmitido continuamente na televisão estatal russa durante uma tentativa de golpe de estado do KGB, em 1991, e já por outras ocasiões anteriores a essa, e à lei dos meios de comunicação social, então alterada, que previa severas sanções pela disseminação de “notícias falsas” sobre a guerra na Ucrânia. A provocação da publicação dirigida pelo Prémio Nobel Dmitry Muratov recebeu um aviso do regulador dos meios de comunicação Roskomnadzor nos primeiros dias da invasão da Rússia.

Edição de Março de 2022 da Novaya Gazeta

Todos os anos, companhias internacionais, normalmente russas, esgotam teatros de Lisboa e do Porto pela altura do Natal/ano novo, com bailados clássicos amplamente conhecidos do público, leia-se, O Lagos dos Cisnes e O Quebra-Nozes. Ainda no início deste ano, o Coliseu do Porto e o Coliseu de Lisboa receberam mais uma vez a companhia Russian Classical Ballet. Já do outro lado da rua, o Teatro Tivoli BBVA recebeu ontem e recebe hoje, dia 15 de Janeiro, às 16h, o bailado clássico mais icónico e dançado de sempre, pela companhia ucraniana Ballet de Kiev, que conta com a direção artística da bailarina principal Ana Sophia Scheller (Ballet Nacional da Ucrânia e ex-San Francisco Ballet e New York City Ballet). Criado em 2017 pelo bailarino principal Viktor Ishchuk (Ballet Nacional da Ucrânia), o Ballet de Kiev já realizou mais de 500 actuações em diversos países, como Suíça, Alemanha, França, Polónia, China, México entre outros, segundo comunicado.

©Rui Figueiredo/ via Facebook Tivoli BBVA

A coreografia original de O Lago dos Cisnes, da autoria de Marius Petipa, estreou em 1877, em Moscovo, sendo que dela nada se terá conservado; a versão que terá sido transmitida até aos dias de hoje, é de 1895, de Marius Petipa e o seu assistente, Lev Ivanov, apresentada então em São Petersburgoi. O bailado conta a história de Odette, uma jovem presa no corpo de um cisne, por culpa do feitiço lançado por Rothbart, pela qual o Príncipe Siegfried se apaixona. O feitiço dita que, só encontrando o amor verdadeiro, Odette voltaria a tornar-se humana. Revoltado pelo amor entre Odette e Siegfried, Rothbart apresenta a sua filha Odile, cujas parecenças com Odette são incontestáveis, na festa do palácio. Pressionado a casar, e confundindo Odile com Odette, Siegfried pede a mão desta em casamento. É então que Odile se revela e Rothbart vê concretizada a sua vingança. Siegfried regressa então, desesperado, ao lago para pedir o perdão de Odette, a qual o concede, mas o feitiço já não pode ser quebrado. Juntos, entregam-se ao lago, onde ficam para sempre unidos pelo amor e pela morte.

O período romântico exalta, entre outros temas, os amores impossíveis, imagina seres transcendentes e explora as dicotomias bem versus mal, terreno/sobrenatural, que neste bailado se vêem personificadas nas personagens Odette/Odile, Siegfried/Rothbart. E, tal como vemos, por exemplo, em Giselle (considerado o expoente do bailado romântico, estreado em 1841, em Paris) onde a jovem Giselle, já transformada em Willi (ser alado), perdoa o seu amado Albrecht e salva-o da morte prematura, ainda que não possa ficar com este, que vive no mundo terreno, em O Lago dos Cisnes, nem a capacidade de perdoar de Odette, metade mulher, metade cisne, é suficiente para a salvar do feitiço a que foi sujeita.

©Ballet de Kiev/ gentilmente cedida por Teatro Tivoli BBVA

Se, por um lado, receber a companhia de dança ucraniana nesta altura poderia ser facilmente considerado uma estratégia de blockbuster, dadas as circunstâncias, será com certeza de exaltar que se permita que bailarinos ucranianos continuem a exercer a sua profissão e a apresentar-se mundo fora. Com as duas datas esgotadas (e certamente mais esgotariam houvesse mais dias), O Lago dos Cisnes, pelo Ballet de Kiev, segundo a coreografia de Marius Petipa/Lev Ivanov sobre a música de Tchaikovsky, vale pelo virtuosismo e grande segurança dos bailarinos solistas e principais. Por contingências da situação, não foi partilhado o elenco. Importa, ainda assim destacar a bailarina principal (Odette/Odile), e o momento alto do pas-de-deux do Cisne Negro, que recebeu um forte e entusiasmado aplauso do público, após os incansáveis fouettés; o bailarino no papel de Rothbart; o pas-de-deux da dança espanhola e a sincronia do pas-de-quatre. Conhecido também como a “dança dos pequenos cisnes”, inspirada na forma como os pequenos cisnes se movimentam sempre juntos e em sincronia, para sua protecção, ganha aqui uma maior força simbólica.

O bailado segue a estrutura original, dividida em quatro actos, entre eles os dois aclamados “actos brancos” (II e IV), onde surgem os cisnes, nesta produção 16, adaptados ao tamanho do palco do Tivoli BBVA. Entende-se que a produção, nestas circunstâncias, seja algo singela, com cenários e adereços de fácil transporte para uma tour internacional; já os figurinos do corpo de baile no primeiro acto carregam alguma artificialidade e o desenho de luz não parece fazer jus à performance dos bailarinos, com um jogo de cores pouco apelativo. Ainda, assistir a um bailado clássico sem orquestra ao vivo será sempre uma experiência incompleta. É, no entanto, também compreensível que neste caso assim seja, pelas razões acima descritas, e não deixa de ser, por isso, um momento simbólico de que valeu a pena ter feito parte.

O Lago dos Cisnes, pelo Ballet de Kiev, com direção artística de Ana Sophia Scheller, segundo coreografia de Marius Petipa e Lev Ivanov, e música de Tchaikovsky, estreou em Lisboa a 14 de Janeiro e volta a subir ao palco do Teatro Tivoli BBVA, hoje, dia 15 de Janeiro.

i  Frederico Lourenço, em Estética da Dança Clássica (2014), Ed. Cotovia

Deixe uma Resposta

Preencha os seus detalhes abaixo ou clique num ícone para iniciar sessão:

Logótipo da WordPress.com

Está a comentar usando a sua conta WordPress.com Terminar Sessão /  Alterar )

Facebook photo

Está a comentar usando a sua conta Facebook Terminar Sessão /  Alterar )

Connecting to %s

%d bloggers gostam disto:
search previous next tag category expand menu location phone mail time cart zoom edit close