The Art of Losing: Companhia de Dança de Almada troca o palco pelo pinhal em peça de vídeodança

Companhia de Dança de Almada (Ca.DA) apresenta The Art of Losing, uma peça de vídeodança realizada a partir de uma ideia original de Luís Malaquias e da coreografia homónima de São Castro, tendo a realização ficado a cargo de Cristina Ferreira Gomes.

“Através da interdisciplinaridade e complementaridade de linguagens e métodos, procurou-se criar uma nova obra sobre uma temática de grande profundidade, que pretende contribuir para consciencializar/alertar para questões de foro ambiental, social e cultural. Integralmente filmado no Pinhal de Leiria, reflecte sobre a importância de saber lidar com a perda”. Ca.DA

 

The Art of Losing em Leiria, Coimbra e Lisboa

Arquivo _ 17 de Novembro | 18h00 | Livraria Arquivo

Caminhos de Cinema Português _ 26 de Novembro | 17h30 | Mini-auditório Salgado Zenha

InShadow – Lisbon Screen Dance Festival _ 14 de Dezembro | 18h30 | Sala Luís de Pina, Cinemateca Portuguesa

 

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foto: Companhia de Dança de Almada

 

Sobre a Memória no Corpo de Luto

Como quem remexe na gaveta de fotografias esquecidas lá de casa, Cristina Ferreira Gomes remexe no passado para encontrar a motivação para The Art of Losing. Em Outubro de 2017, Portugal esteve em chamas e a aflição penetrou brutalmente no país, arrastando consigo o Pinhal de Leiria. É nas cinzas deste que The Art of Losing parte da coreografia homónima de São Castro, estreada em 2016, para construir uma obra renovada.

Finda a apresentação do filme, não é possível delimitar uma linha fronteiriça entre a peça de vídeodança e o espectáculo original, pois não foi apenas a coreografia o objecto de transição, mas também alguns dos complementos que nela intervêm, tais como as sonoridades do espectáculo ou os figurinos. Para pensar sobre este vídeo como uma obra diferente da que foi apresentada em palco, é preciso considerar a intervenção de Cristina Ferreira Gomes nas escolhas cinematográficas e o intuito de Luís Malaquias para a filmagem desta peça, inclusa no reportório da Companhia de Dança de Almada.

Ao longo de quatro cenas o olhar do espectador é subtilmente guiado por seis corpos que confluem numa expressão ambígua, mas notoriamente sensível ao espaço partilhado. A dualidade entre o preto e branco lembra o aspecto gasto dos desenhos a carvão, e o espectador acaba submerso numa composição de imagens fortes, quase surreais. Apesar disto, estes são cenários de um mesmo lugar real: o pinhal, lugar das cinzas e do que restou. Para todos os efeitos, as árvores resistentes nas quais estes corpos agora habitam representam a memória do que se perdeu nestes incêndios. Mas também os figurinos, negros, de texturas incríveis e altamente assimiladas pela lente da realizadora. Como lidar com esta descoloração quando ela é uma realidade agora semeada por todo o país? A ausência de cor, essa repercussão da ausência de vida, faz das cinzas sob os corpos dos intérpretes o objecto palpável da perda.

Há uma cena, num plano inclinado, cujo impacto visual, a par da rigidez que assola a generalidade dos movimentos, parece delinear a realidade social que ficou após a devastação dos incêndios: num caminho que todos fazem a custo, um dos intérpretes arrasta-se apreensivo ao que ficou para trás, enquanto simultaneamente desbrava corajoso o terreno por todos os que o acompanham. Avançam eles pela tela adentro e abaixo, do mesmo modo que os incêndios devastaram tudo no seu curso. Este é um caminhar para a grande perda ambiental, mas mais, sabe quem cresceu por Leiria, que esta é também um caminhar para uma das mais profundas dilacerações na cultura local nos últimos anos.

Num momento já avançado do filme, erige-se um contacto-improvisação da perda: dois intérpretes encontram-se numa perda de sentidos que os leva a apoiarem-se um no outro à vez, quantas vezes conseguem antes de se perderem. A especificidade deste corpo de São Castro, envolto em si mesmo, ritualiza-se quando se envolve com os demais… De tal modo que, exponenciando a linha de movimentos que até aqui se vinha a desenvolver, estas duas figuras se perdem agora com o corpo todo: perdem com a cabeça, com as mãos, com os olhos, perdem com o arrasto que levam do que os trouxe até este lugar, vazio e morto. O gesto, as árvores, a imensidão do céu: tudo é físico. Os braços ao alto caem. Perde-se a força, o equilíbrio, a cabeça. Levam-se as mãos à cabeça! O dueto apresenta enfim um momento catártico, uma intensidade reveladora que culmina na solidão e no afastamento do grupo. Depois, um longo plano de afastamento revela a amplitude da área queimada e mostra o todo como nunca antes fora mostrado. Tudo o que se viu e sentiu até este momento, as lágrimas, as veias palpitantes e a emoção vincada nos grandes planos, é absorvido e recolhido numa instância que não é a da nostalgia, mas a da carga maciça e pesada que alberga a perda. É um baixar de braços, mas também um respirar fundo, um encher de pulmões e um ganhar fôlego para regressar à superfície.

Afinal, o vento leve que paira no que resta das árvores altas chega aos arbustos secos que lutam por encontrar novas formas de vida e traz a fragilidade de todo o cenário para a imagem gravada. Recalcam-nos as perdas e num murmúrio dizemos. Estamos de luto.

Carolina Gameiro

 

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foto: Companhia de Dança de Almada

 

Sobre São Castro e Cristina Ferreira Gomes

São Castro licenciou-se na Escola Superior de Dança, em Lisboa, e integrou o Balleteatro Companhia, a Companhia Portuguesa de Bailado Contemporâneo e o Ballet Gulbenkian. Trabalhou com a Companhia Paulo Ribeiro, a Companhia Olga Roriz, a Companhia Clara Andermatt, Rui Lopes Graça, Sofia Silva, Benvindo Fonseca, Vasco Wellenkamp, Quorum Ballet / Daniel Cardoso, Tok’Art / André Mesquita, Ka Fai Choy, Tânia Carvalho, Luís Marrafa e Hofesh Shechter / Companhia Instável. Já criou para a Companhia de Dança do Algarve, para Escola de Dança do Conservatório Nacional e para o Projecto Quorum.

Com António Cabrita tem vindo a desenvolver desde 2011 o projecto | ACSC |, do qual Play False, peça estreada em 2014, recebeu o Prémio Autores 2015 na categoria Dança – Melhor Coreografia, atribuído pela Sociedade Portuguesa de Autores. São Castro e António Cabrita são, actualmente, directores artísticos da Companhia Paulo Ribeiro, para a qual criaram Um Solo para a Sociedade. Depois, a convite de Luísa Taveira, criaram Dido e Eneias para a Companhia Nacional de Bailado.

Cristina Ferreira Gomes é fundadora e directora da produtora Mares do Sul. A estreia como realizadora foi com o documentário Mulheres ao Mar, com o qual recebeu o prémio Revelação no Festival Caminhos do Cinema Português, em 2002. O documentário seguinte, Carta de Chamada, recebeu menção honrosa para melhor documentário e também o prémio do público para melhor documentário no Festival Caminhos do Cinema Português de 2006. O filme integrou ainda a Mostra Panorama e a Mostra de Cinema Português em São Paulo e no Rio de Janeiro, no ano seguinte.

Do seu percurso como realizadora, destacam-se na área do documentário a série documental Portugal que Dança; Domingo à Tarde; Menina Limpa Menina Suja e À Procura de António Botto. Integrou o júri do Sir Peter Ustinov Television Scriptwriting Awards de 2013 a 2016, da International Academy of Television Arts & Sciences.

Ficha artística

Realização Cristina Ferreira Gomes
Coreografia e música original São Castro
Interpretação Beatriz Rousseau, Bruno Duarte, Francisco Ferreira, Joana Puntel, Luís Malaquias e Mariana Romão
Figurinos Nuno Nogueira
Imagem Luís Graciano, Cristina Ferreira Gomes e André Barreto
Som Joana Girão
Produção Luiz L Antunes
Montagem Sara Esteves
Colorista Gonçalo Ferreira
Pós-produção áudio João M. Santos

Ca.DA – Direcção artística e coordenação geral Maria Franco
Ca.DA – Direcção de ensaios Maria João Lopes

Mares do Sul – Direcção geral Cristina Ferreira Gomes

 

Mais info: Companhia de Dança de Almada

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