Directora da Sasha Waltz and Guests (sediada em Berlim) e um dos nomes mais sonantes da dança contemporânea europeia, Sasha Waltz criou já em 2004 uma coreografia supostamente inspirada na estrutura da composição musical clássica. Impromptus – ou improvisos – baseia-se em nove obras curtas de Schubert: quatro lieder (pequenas canções para piano e voz) e cinco peças da colectânea para piano solo, publicada em 1827 sob o mesmo título, apenas um ano antes da morte do compositor. No palco do Teatro Camões, a pianista Jill Lawson e a soprano Sara Braga Simões revivem as notas de Schubert que norteiam sete bailarinos da Companhia Nacional de Bailado (CNB), um momento que marca o primeiro contacto da coreógrafa com a companhia portuguesa e adivinha colaborações futuras.
Na verdade, a relação entre estrutura musical e desenho coreográfico não é de todo imediata (de resto, a música é entrecortada por longos trechos de silêncio, tão dançáveis quanto os trechos musicais). A relação entre o trajecto dos corpos e das teclas do piano mais parece propor uma simbiose do que um retrato estrutural. Em lugar de desenhar a melodia, os movimentos dos bailarinos antes sugerem uma ilustração do espírito da partitura: por vezes melancólica, às vezes dramática, outras vezes absurda. Por oposição ao rigor formal da música, parece ainda haver uma assinatura na composição que remete para noções de vulnerabilidade e (des)equilíbrio, ideias reforçadas pela própria cenografia – duas plataformas desniveladas e em plano inclinado, um trapézio vertical, enorme e assimétrico, ao fundo do palco. Obrigados a dançar em solo instável, os sete intérpretes procuram um movimento de paridade e apoio, organizando-se em pares, trios ou em grupo; mas são os pas-de-deux (abertura, intermezzo e fecho) que estruturam a peça. Confidenciou Michal Mualem à Visão que os duetos se ligam aos conceitos de dependência, memória e confiança – depender do outro para dançar, dançar a memória do outro, confiar para evitar a queda – ou à ideia de vencer a insegurança em terreno incerto, fendido, escorregadio.
Primeira criação de Sasha Waltz com base em repertório musical clássico, Impromptus concretiza um diálogo fluido entre música e dança, organicamente traçado (a título de exemplo, refira-se o momento em que as escalas rápidas em tercinas do Impromptu em mi bemol maior desencadeiam uma interminável correria em palco) e deliberadamente exploratório do potencial e limites do corpo. Excepção feita a um ou dois momentos em que observamos opções dramatúrgicas algo aleatórias (a presença do corpo nu na criação coreográfica contemporânea poderia ser alvo de uma reflexão à parte), a peça desenvolve uma textura coreográfica centrada na fragilidade e no risco, imputando uma equidade ao corpo feminino e masculino (na forma, função de peso/ contrapeso ou de sustentação/acto) e desenhando morfologias acrobáticas, quase impraticáveis, que vão do belo ao estranho e parecem desafiar a gravidade e resistência física. O Impromptus de Sasha Waltz, improviso ponderado, feito de movimentos que a todo o momento parecem ora firmes, ora periclitantes, é um tributo à música de Schubert, mas sobretudo um elogio às possibilidades do corpo que dança.
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Impromptus (2004)
Conceito e Coreografia: Sasha Waltz; Música: Franz Schubert; Cenografia: Thomas Schenk e Sasha Waltz; Desenho de Luz: Martin Hauk; Figurinos: Christine Birkle; Soprano: Sara Braga Simões; Piano: Jill Lawson; Remontagem Coreográfica: Cláudia De Serpa Soares e Michal Maulem; Execução de Figurinos: Laëtitia Michal e Atelier de Guarda-Roupa da CNB sob Orientação da Mestra Paula Marinho; Interpretação: Artistas da CNB (Marta Sobreira, Inês Moura, Henriett Ventura, Inês Ferrer, Miguel Ramalho, Gonçalo Andrade, João Pedro Costa).
Fotografia: Bruno Simão / CNB 2018
Uma opinião sobre “«Impromptus», de Sasha Waltz, Teatro Camões”