Não adivinhariam Igor Stravinsky (1882-1971), Vaslav Nijinsky (1889-1950) ou Sergei Diaghilev (1872-1929), após o motim na estreia de LeSacre du Printemps no Théâtre des Champs-Elysées, em Paris (a 29 de Maio de 1913) que esta obra viria a ser acolhida por várias companhias e sujeita a múltiplos re-enactments. Veja-se, por exemplo, em Portugal, Joseph Russillo para a Fundação Calouste Gulbenkian (1980), Carlos Trincheiras para a Companhia Nacional de Bailado (CNB; 1984), Millicent Hodson e Kenneth Archer para a CNB (1994), Marie Chouinard para o Ballet Gulbenkian (2003) e, mais tarde, a propósito da comemoração do centenário dos Ballets Russes de Diaghilev, as estreias das obras de Cayetano Soto (para a CNB, 2010) e de Olga Roriz (para a Companhia Olga Roriz, 2010; mais tarde remontada para a CNB, em 2012, e o solo da coreógrafa e bailarina em 2013).

Aclamada como a obra que determinaria uma mudança de paradigma do tecido criativo na dança do século XX, ASagração da Primavera continua a intrigar os mais variados compositores, coreógrafos e tantos outros profissionais das artes do espectáculo. E é por isso mesmo, com certeza, um desafio maior – e até um atrevimento – pegar nesta obra e fazê-la sua, moldando-a a uma linguagem própria de cada criador e bailarino (para além de todas as estruturas inerentes que são igualmente repensadas – cenografia, figurinos, desenho de luz…). Daniel Cardoso, director artístico e coreógrafo do Quorum Ballet (QB), não se fica por aí e acrescenta ainda ao título da obra «Made in China» – não fosse toda a criação desenvolvida em Xangai em parceria com Magic Flute Co. e Shanghai Oriental Arts Center e com coreógrafa (Xiexin) e bailarinos chineses convidados.
A ideia de um intercâmbio, contudo, não se concretizou plenamente, por questões económicas (lamentável quando falamos de uma das Companhias mais internacionais do país). Originalmente pensada e estreada na China (no próprio Shanghai Oriental Arts Center ) com sete bailarinos QB e sete bailarinos chineses, esta obra trouxe a Portugal apenas dois desses bailarinos – Jiang Wei e Zhang Yixiang. Ainda assim, e remando contra a maré, como já estará acostumado, Daniel Cardoso, juntamente com Xiexin, traz-nos uma obra absolutamente inspiradora. Lê-se na folha de sala que esta peça, «tal como a produção original do Ballet Russes, busca romper com a tradição – sendo a tradição aqui a peça musical de Stravinsky e a coreografia de Nijinsjy». Estaremos então perante uma «Sagração da Primavera»?

Abrem as cortinas e vemos Daniel Cardoso em palco, pensativo, a preparar-se para um ensaio. Com uma cenografia aparentemente simples, uma projecção de tinta da China caindo em folha branca dá o toque de entrada até que os restantes bailarinos se juntam ao ensaio. Tudo se começa então a compor, e a própria tinta dispersa dá lugar a caracteres precisos. Claramente sem uma interpretação e narrativa lineares em relação àquilo que se conhece da obra original, Daniel Cardoso pediu ao compositor Jorge Silva que criasse alguns trechos para musicar a peça na primeira e segunda partes, que funcionam como prelúdio à então Sagração. Na segunda parte, Xiexin e Daniel Cardoso coreografam as relações complexas, Homem e Mulher/Ying Yang, ora de conflito, ora de harmonia, como podemos testemunhar com o trio interpretado por Jiang Wei, Pedro Jerónimo e Inês Godinho – entre a luta, o magnetismo e o desejo.
Ora com contornos mais femininos, de uma grande sensualidade, por influência de Xiexin, ora com movimentos mais impulsivos, a coreografia vai ganhando força, com dinâmicas de grupo e constante aproveitamento dos elementos cenográficos até que surge, timidamente, a música de Stravinsky. Os bailarinos calmamente desatam os sacos de pano caídos em palco, com as vestes que vão usar para a Sagração e cobrem o corpo de argila.
Em Sagração da Primavera/ Made in China não testemunhamos o sacrifício da virgem que dança até à morte. Ao invés, encontramos o sacrifício simbolicamente representado pelo Exército de Terracotta que protege Qin Shi Huang, o primeiro imperador da China. Este Exército em palco dança até à exaustão, num frenesim constante, testando os limites do próprio corpo numa sequência de imagens em movimento cadenciado e de grande exigência técnica e expressiva. Bravo!

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Sagração da Primavera | Made in China estreou em Portugal no passado Sábado, 21 de Abril, no Cine-Teatro D. João V, na Damaia, depois da sua criação e digressão na China.
Irá passar ainda pela Figueira da Foz este Sábado, dia 28 de Abril, pelas 21h30, no CAE – Centro de Artes e Espectáculos.
Sagração da Primavera|Made in China (2017)
Cine-Teatro D. João V, Lisboa
21 e 22 de Abril de 2018
Direção Artística, conceito e coreografia Daniel Cardoso
Coreógrafa convidada Xie Xin
Dramaturgia Pedro Alves
Música Igor Stravinsky
Música original Jorge Silva
Ballet Master Rui Reis
Desenho de Luz Rui Daniel
Espaço cénico Hugo F. Matos e Daniel Cardoso
Figurinos Li Kun e Maria Monte
Vídeo Ricardo Reis
Caligrafiachinesa Wang Zaijung, Confucius Institute of Lisbon
Equipa Técnica Rui Daniel, Marco Dias e Rui Braga
Ensaiador Rui Reis
Professora convidada Sandra Resende
Bailarinos Beatriz Graterol, Ester Gonçalves, Fábio Blanco, Filipe Narciso, Inês Godinho, Ísis Sá, Inês Pedruco, Jiang Wei, Margarida Carvalho, Pedro Jerónimo, Rafael Oliveira, Sara Casal, Zhang Yixiang
Produção Raquel Vieira de Almeida
Fotografia Cristina Cardoso
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