Existirá um corpo português? Mote para o painel de debate que albergava José Gil, Ana Pais, Né Barros, Gonçalo M. Tavares, Daniel Tércio, Maria José Fazenda, Anabela Pereira e Maria João Brilhante, era uma questão de imediato assumida como controversa, da parte do moderador, ou vá, “mestre de cerimónia”, Gustavo Vicente. O que já se esperava, mas não se adivinhava, foi a conversa honesta, demarcada do encapsular hermético tantas vezes associado às artes performativas.
Frente ao público numa sala de pouca clausura do Teatro Nacional Dona Maria II (TNDMII) e ladeados por paredes esburacadas pela arte de Alexandre “Vhils” Farto, a luz quente de sumptuosos candelabros foi se sobrepondo ao entardecer prematuro. O painel procurava criar mais questões além da questão-premissa “têm o teatro, a dança e a performance em Portugal contribuído para intensificar a afirmação do corpo no espaço público?” que servia para elucidar o conteúdo da obra que se visava promover, reunindo ensaios dos convidados a intervir, de nome Intensified bodies from the performing arts in Portugal. Coordenada por Gustavo Vicente e publicada sob edição de Peter Lang, vê a venda em Portugal restrita à livraria do TNDMII.
Com o mais típico dos inícios neste tipo de evento, a conversa começou tímida e com a divagação habitual, com alguns dos intervenientes mais expansivos que outros. Isto é, até Gonçalo M. Tavares aproximar o microfone para junto de si. A partir daquilo que se presume ser as suas notas privadas, que redige de forma quase compulsiva no caderno, quiçá para ordenar um raciocínio tão veloz que ao mínimo imprevisto topográfico pode descarrilar e perder-se, Tavares reteve com firmeza ingénua, um paradoxo cariz de genialidade, o título dado pela imprensa cultural de próximo grande candidato português ao Nobel, visto que Lobo Antunes até para um dos frontmen de Traveling Wilburys parece não ter hipótese. Ao apontar a fragilidade do corpo à nascença, e consequente dependência de outros corpos mais autónomos para sobreviver, procurou apontar a intensidade que está presente desde a fricção causal da gestação, e que, para além da ordem física que nos rege, “o corpo é memória, linguagem e pensamento… é também aquilo que não se vê”. Mas recuemos, de volta ao (quase) início.
Cotado de um sentido de humor inesperado, dado a imersão necessária pela psique para interiorizar a sua produção académica, José Gil foi claro, sucinto e, sobretudo, ponderado ao dividir a natureza da questão de abertura, que Gustavo Vicente colocara, em dois planos: o corpo português como identidade de movimentos, acções, vulgo “maneira de ser”, ou reacções a estímulos do meio e seus agentes; o plano por norma aplicado às ideologias totalitárias, como se de puro sangue de tracção animal se tratasse, que Gil afirmou, qual douta ignorância socrática, não fazer “ideia do que corpo português possa ser”.
Tendo a conversa dispersado, com todo o sentido, pela identidade de género e diversidade que se crê almejar o mundo globalizado, a conclusão jamais seria possível quando compacta em pouco menos de uma hora e meia passada naquele espaço. A ideia mais pertinente acabaria por vir do mesmo homem que, pese ter intervido apenas duas curtas vezes, foi um deleite de lucidez, por oposição ao delírio polifónico de muitas das suas obras literárias. Quando notou que a palavra ”área” e “área disciplinar” era muitas vezes empregue pelos restantes convidados, Gonçalo M. Tavares fez questão de apontar que “área significa fronteira, uma limitação” e para progredir através do embeber do conhecimento, “tais limites não podem existir”.
À boa maneira popperiana do método científico, a conclusão não podia ser mais gritante: haja mais produção intelectual em Portugal que teorize as artes performativas, de modo a diminuir campos comuns e consensos, que ao contrário da norma, são a maior enfermidade do espírito crítico. Sentiu-se isso entre os intervenientes do painel e no seu diálogo final com parte do público que decidiu colocar questões. Embora, no livro houvesse uma fluidez surpreendente entre ensaios escritos de forma autónoma, havia no ar conflito (à maneira de Mahatma Gandhi, não violento) numa busca incessante por resolução.
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Intensified bodies from the performing arts in Portugal, com coordenação de Gustavo Vicente e textos de José Gil, Ana Pais, Né Barros, Gonçalo M. Tavares, Daniel Tércio, Maria José Fazenda, Anabela Pereira e Maria João Brilhante, foi lançado no passado Sábado, dia 18 de Novembro, pelas 16h, no Teatro Nacional Dona Maria II, em Lisboa. A obra está à venda em exclusivo no mesmo Teatro. Mais info/para verificar a disponibilidade da obra, clique aqui.