Originalmente publicado em arte-factos.net, a 14 de Março de 2016.

Diz a expressão popular que à noite todos os gatos são pardos – ou, no escuro, todas as coisas são semelhantes. A ideia funda-se numa explicação biológica relacionada com a resposta das células fotos-sensíveis da retina à ausência de luz: deixando de distinguir convenientemente as cores, à excepção do preto e do branco, o olho foca-se apenas nas variações de brilho. A noite tem, por isso, o poder da confusão e do disfarce, é o domínio do obscuro e do indizível, mas também da ousadia, da coragem e da experimentação – quando não materializada no corpo, pelo menos concretizada por meio da fantasia e do sonho, também estes propriedade da noite. Foi este o território aproveitado pela Circolando para a sua mais recente criação, que assume essa atracção pelo nocturno e a utiliza como matéria de um projecto de redefinição artística e de procura de uma nova linguagem. Os criadores e bailarinos partiram do universo poético de Al Berto, um lugar da noite cuja ligação à companhia é já antiga, para investigar novos jogos teatrais e materiais cénicos, numa pesquisa centrada na dança e no movimento. Eventualmente, esse impulso foi abandonado ao longo do processo de criação para dar lugar a sucedâneos desse mundo de sombras e negrume. Nas palavras da companhia de André Braga e Cláudia Figueiredo, foi apenas o início de uma viagem por diferentes noites, nascidas do encontro das palavras de Al Berto com as ideias dos intérpretes.

Três bailarinos em palco – André Braga, Paulo Mota e Ricardo Machado – debatem-se num amontoado de pneus usados, confettis e pó. Há qualquer coisa de suburbano, de marginal e clandestino, inventam-se odores que não se podem cheirar – a borracha, sangue, suor e caos – e sente-se uma tensão que a narrativa não explica ainda. Ao longo da peça, os pneus são ordenados e desordenados pelos bailarinos para multiplicar as cenografias – todas elas lugares de exposição e de conflito: O universo de Noite é o de todas as coisas que acontecem de noite – da transgressão, do excesso, da superação do medo e da loucura transitória. Uma arena, um ringue de boxe, uma discoteca, uma rua deserta pela qual um cão fareja, um assalto, uma batalha. Até que a noite chega como como metáfora da morte, ao som do Lacrimosa do Requiem de Mozart. Aqui nada gratuito ou leviano, embora a jornada seja longa, até emocionalmente esgotante. O espectáculo, que se prolonga por quase duas horas, transcende a técnica irrepreensível da dança e instala-se num terreno dramatúrgico complexo, cuja linguagem é violenta e nos confronta com a sua duplicidade simbólica – uma bola de pneus suspensa sobre o palco, que pode ser uma prisão ou a lua; um ringue que pode ser um palco ou um palanque; os confettis esvoaçantes ou colados aos corpos que podem ser estrelas ou sangue; corpos que, num abraço, se amam ou se agridem.
O universo de Noite é o de todas as coisas que acontecem de noite – da transgressão, do excesso, da superação do medo e da loucura transitória. Um território onde tudo é possível e todas as coisas encontram o seu contrário. Aí, onde se pode parecer quem não se é, ou mesmo ser quem não se assume, três corpos excedem-se no movimento enquanto exploram o espaço até aos seus limites – ou pelo menos até a um amanhecer que simultaneamente se teme e se antecipa. É esta a proposta da Circolando, que diz assim assinalar um regresso a projectos mais intimistas – e que de facto encontra eco numa vontade humana e íntima de uma constante demanda.

«Eis a noite onde esqueço a vida e cismo sobre aquilo que ainda não sonhei. E aceito como único presságio a melancolia aérea das açucenas. Aceito como único consolo a desolação imensa dos teus braços. Aceito, aceito como único calor o da tâmara crescendo no deserto, aceito como único vício aquele cuja pele ainda não toquei. Aceito como única noite a das searas do fundo do mar. Aceito como única fala possível aquela que é susceptível de rasgar pulsos. Aceito como único corpo aquele que não cresceu dos relógios do mundo. Aceito, aceito como único sonho aquele espelho onde te reflectes e me encontro. Aceito a humildade de viver sozinho, a vergonha dos desejos insatisfeitos, a noite que me devora, aceito, aceito estas paredes, estes objectos, este sol, esta varanda, este mar, estes braços, estas mãos, este sexo, estes dedos, aceito, aceito, estes peixes de enxofre estatelados sobre a mesa, estas visões de catástrofe, estes sonhos premonitórios, estas luzes surgindo na pele, aceito, esta dor que me morde, esta escrita, este coração, estas doenças, estes cabelos, a escassez da fala, este silêncio cada dia maior e mais perturbador, aceito esta cadeira, este livro, este nome, estes olhos esmagados pela insónia, esta cama vazia, este frio, aceito, aceito, aceito esta janela, esta música de vísceras, esta faca, este sussurro, esta ausência, esta imagem desfocada, esta gravata adolescente, este sismo, este grito, estas coxas sujas de esperma, esta comida, estes cigarros, estes cadernos rabiscados que não servem para grande coisa, aceito, aceito a inutilidade de viver, de morrer, de estar aqui, de me deslocar, de permanecer, de fugir, de esperar, aceito, aceito a inutilidade de me reconhecer e de amar, a inutilidade dos dias, aceito, aceito o marulhar lodoso da alma, aceito não ter projectos nem querer construir uma pátria, aceito, aceito o vazio imenso das algibeiras, a dor das mãos percorrendo um corpo, aceito o caos e esta mosca que não encontra saída e morre no calor da lâmpada, aceito, aceito estes ossos, esta loucura que me assola lentamente, lentamente, aceito ficar louco, inconsciente, indefeso, aceito a tristeza que me ofereces, a pouca água que me é necessária, aceito, aceito nunca mais me lembrar de mim e viver pobre, aceito nunca mais te tocar nem acreditar em deus, aceito, aceito não possuir nada, não querer nada, aceito, aceito nunca mais aqui voltar, nunca mais.»
Al Berto, “O medo”