«A Sagração da Primavera», solo de Olga Roriz, Culturgest

Originalmente publicado em arte-factos.net, a 28 de Junho de 2013.

foto: Rodrigo de Souza

No passado dia 23 de Maio, aquando de um encontro sobre a obra A Sagração da Primavera, no Teatro Camões, Rui Nery observou: “Não há nada de significativo na música do século XX que não passe por um confronto com a Sagração da Primavera”: ou a rejeita ou nela se baseia, mas nunca a ignora.

Quando a 29 de Maio de 1913 estreia no recém-inaugurado Théâtre des Champs-Élysées A Sagração da Primavera, a recepção por parte do público não podia ser mais polémica: assobios surgem vindos da plateia, não se conseguia ouvir devidamente a orquestra, Stravinsky retira-se, Nijinsky grita para o palco a indicar as marcações dos bailarinos, na confusão ensurdecedora, a gerência do teatro tenta por várias vezes acalmar a confusão, acendendo e apagando as luzes, mas em vão. Enfim, um tumulto dá-se naquela noite e a imprensa reage com críticas negativas. Para além da proposta musical – com uma pulsação aparentemente irregular, com arritmias que contrariam a nossa expectativa de ritmo e musicalidade, e que faz surgir uma noção de ritmo inovadora – e da história da peça, que tem as suas raízes em narrativas populares, em contos, cantos e danças tradicionais eslavos, com uma base de construção coreográfica que reúne uma visão desta cultura, a obra dançada revela uma modernidade no desenho do movimento do corpo, na própria concepção da dança e da expressão corporal, que não é de admirar que no início do século XX a recepção fosse de estranheza, altura em que a dança contemporânea começa a criar a pouco e pouco o seu espaço. Com uma expressão diferente do Ballet Clássico, esta coreografia, que apresenta frases temporalmente mais súbitas e espacialmente mais directas, atribui a cada bailarino uma leitura única, uma forma de expressão individualizada; cada bailarino apresenta frases diferentes em palco, ainda que haja uma visão de um todo, segundo Maria José Fazenda, na mesma palestra no Teatro Camões. Os figurinos, por Nicholas Roerich, também em tudo contrariam as vestes típicas de bailado, com maiores proporções e peso. Uma dança primitiva, longe da elegância e subtileza do bailado clássico, conjuga saltos e voltas e saltos e voltas e pés para dentro e mais rodas, desenhos circulares até à exaustão. A história gira em torno de um ritual de sacrifício para a Primavera, em que, numa Rússia pagã, uma virgem é escolhida para dançar até à morte. Uma apresentação do irregular e imprevisível, do primitivo, em confronto com aquilo a que a elite parisiense estava habituada. Trata-se, portanto, de um momento fracturante para aquela que é até então a visão estética do Ballet e também da Música.

Depois de prometer a si mesma que não se atreveria a coreografar esta peça que já conta com cerca de 182 versões coreográficas, Olga Roriz não só a revisita na sua Companhia, como também a coreografa para um solo, que apresentou nos passados dias 21 e 22 de Junho, na Culturgest. Raros são, de facto, os coreógrafos que se propõem a coreografar esta obra, e muito menos os que aos 57 anos de idade ainda a dançam. Em Maio de 2010, disse: “Coreografar A Sagração da Primavera de Igor Stravinsky nunca pode acontecer por acaso nem ter data marcada ou ser uma encomenda alheia à vontade do criador. A Sagração é uma peça à espera do momento, do lugar certo, de uma vontade, de um desejo incontornável. A Sagração é um desafio, um risco, um precipício no abismo ao qual loucamente me lancei com toda a minha paixão.”

Cada interpretação desta peça terá a sua leitura. A do solo de Olga Roriz será a materialização total dessa individualização do movimento corporal, que não se esgota em si mesmo. Ela está sozinha em palco, vulnerável ao olhar expectante de quem aguarda uma mudança, uma ruptura naquilo que até ali foi a sua visão da dança. Porque aquilo que nos leva a assistir a um espectáculo de Contemporânea não pode ser meramente a necessidade de entretenimento, ou de distracção, mas um qualquer desejo, mais ou menos mundano, de um abano, um despertar para um novo tema, um repensar dos nossos hábitos quotidianos, um olhar mais profundo do que é a ideia de colectivo numa sociedade contemporânea.

Na alegoria que era a original Sagração da Primavera de Ninjinsky – com o seu movimento inovador e escandaloso – cada bailarino em palco representava uma personagem, e todos juntos formavam o arquétipo da sociedade. Aqui, Olga Roriz faz a revolução através do seu corpo. Rodopia, e rodopia e rodopia até que por fim cai em palco num movimento exausto. As pulsões orgânicas do seu corpo, próprias de algo que não foi regulado (tal como a arte tradicional), esgotam o fôlego também do espectador.

Um vídeo passa imagens regulares da vida citadina – o trânsito, a chuva, Nova Iorque, arranha-céus, sucatas,… – enquanto Olga escreve e fuma e deambula em palco. Partimos sempre de algo particular para algo maior. Não se dá apenas uma confusão corporal turbulenta, também se deixa espaço para a reflexão, assim como o fumo do cigarro pousado no cinzeiro se deixa multiplicar pela poeira sacudida e libertada por aquele corpo frágil.

Dia 28 de Junho, A Sagração da Primavera chega a S. João da Madeira. Pelas 21h, na Casa da Criatividade.

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