Originalmente publicada em arte-factos.net, a 23 de Abril de 2013.

Nesta sexta-feira, dia 26 de Abril, estreia uma nova peça da Companhia Nacional de Bailado (CNB), com coreografia e direcção de Clara Andermatt e música de João Lucas.
O som repousante da harpa expande-se pelo auditório onde apenas uma espectadora clandestina se encontra na assistência. Aguardo Clara Andermatt, enquanto um dos músicos da Circular Ensemble ensaia temas de dance bailarina dance.
Passo então para o foyer de entrada do Teatro Camões, quando surge sorridente e muito bem-disposta, e a conversa desenrola…
Este é um espectáculo que se inspira nos musicais americanos dos anos 40 e 50…
Foi uma proposta feita pela directora da Companhia, Luísa Taveira, que quando me convidou propôs esse tema e eu disse que sim, com agrado.
Eu acho que com o intuito de agarrar numa altura tão dramática que estamos a viver no nosso país, e digo de uma forma global e geral, e de uma certa depressão, escolheu esse tema.
Quando pensamos naqueles musicais, naqueles filmes de Hollywood, nessa época de ouro, associamo-los ao glamour, à elegância, à beleza, à alegria. Ao princípio fiz uma associação, talvez também por necessidade, porque apesar de tudo aqueles filmes têm o tema da paixão, do amor, da felicidade; e eles batem todos na mesma tecla, um bocadinho. Para trabalhar coreograficamente, para também conseguir transpor este trabalho que há no cinema – onde as coreografias são feitas propositadamente para os filmes, com cenários diferentes (os bailarinos passam da casa para a rua, da rua para a chuva, para os estúdios, com aquelas escadarias infindáveis), fiz uma associação muito óbvia para mim com o artista gráfico Escher. Acho que por necessidade de encontrar também um outro conteúdo, um outro pensamento, mesmo cenográfico e visual.
O cenário foi muito inspirado nos desenhos de Escher, no subir e descer escadas, nosloops, naquela recursividade infinita das repetições, naquele lado matemático e geométrico, de uma própria ilusão da perspectiva. O cinema e essas ideias: de alguma forma quis transpor isso para o palco. Estas foram as duas linhas paralelas de arranque do projecto e também de uma matriz que ficou lá desde o princípio até ao fim.
Algum filme concreto que a tenha despertado mais para a criação desta peça?
Não, mas houve filmes que revi, como West Side Story, Singing in the Rain, Top Hat. Tive referências como o Gene Kelly, o Fred Astaire… em paralelo com outras referências musicais do João Lucas.
Revi bastantes filmes, há momentos em que isso é muito visível, mas o trabalho é todo feito com uma perspectiva contemporânea e também com a minha própria linguagem.
Houve ainda outras referências que fui buscar, do expressionismo alemão, do cinema mudo, o Fritz Lang, a Mary Wigman, que também quebrou com certas regras, isto como contraponto a todo o lado mais sincronizado, padronizado e matemático para uma expressividade diferente a nível físico.
Sabemos que toda a obra de arte é um diálogo e, mais concretamente na dança, este pode ser mais ou menos explícito. Há em “dance bailarina dance” uma narrativa?
Não há uma narrativa, há uma dramaturgia mais organizativa, uma estrutura. Eu e o João Lucas, quando começámos a trabalhar nesta peça, tivemos a necessidade de criar uma dramaturgia interna e de a dividir por quadros. O início, mais óbvio, foi perceber a dramaturgia dos filmes: o encontro, quando o rapaz conhece a rapariga, e depois a sedução, e de repente o ciúme, porque ele encontra uma outra mulher, que normalmente é até a própria bailarina, que de repente toma um relevo muito grande, e depois o desgosto, a solidão e a seguir acaba por ficar tudo bem e há um final feliz. Agarrando nessa dramaturgia quisemos encontrar um paralelo com outros conteúdos, com uma outra densidade, transpondo isso àquilo que vivemos neste momento.
Há algumas coisas que são transversais a todas as épocas, e sentimos que o passado, o presente e o próprio futuro se unem num momento só. Não há, portanto, uma dramaturgia linear, mas há aqui pontos que se tocam com estas narrativas dos próprios filmes e com outras narrativas nossas, pessoais. Há um momento, por exemplo, quase no final do espectáculo, que é uma chamada talvez óbvia de chegada ao nosso tempo, à nossa realidade, ao aqui e ao agora, que é precisamente uma parte musical, criada por um compositor de música electrónica, o Jonas Runa, que criou um software interactivo para iphones. Os bailarinos manipulam-nos como se fossem instrumentos invisíveis e produzem o som. É uma saída de todo um universo que foi estando presente na peça para chegar aqui, para a humanização também da própria tecnologia e depois então parte para o final, com uma ideia de infinito e de circularidade. Leva, portanto, a peça para uma outra dimensão, do amor, como nos filmes com os finais felizes, aqui mais numa relação de um encontro com outras consciências.
É óptima a sensação de sairmos de um espectáculo renovados, mas a reflectir; com a ideia de que a nossa vida daí adiante será reflexo, pelo menos em parte, das considerações e reflexões que fizemos ao longo da peça…
Quando o espectáculo consegue elevar o espectador a essa reflexão e a essa transformação interior quando ele vem cá para fora é porque é muito conseguido e eu espero que isso aconteça…
Uma pergunta demasiado óbvia, que de certa forma já respondeu: alegria – a palavra de ordem deste espectáculo. Onde acha que está a alegria nos dias de hoje ou por que merece ela ser revisitada?
Ela existe nas mais pequenas coisas e isso também tem a ver com a nossa capacidade de a vermos e de a descobrirmos e de consciencializarmos onde ela está. Somos nós que temos de a fazer existir e que temos a capacidade de a ver. Ela existe nos afectos, ela existe na arte, e se a arte transporta poesia e essa capacidade que a arte tem de nos fazer ir para outros sítios é fundamental, acho que neste espectáculo é também isso que se pretende. Numa altura tão difícil e tão triste como a que estamos a viver, é importante também que não nos deixemos engolir por uma negritude que está à nossa volta, que nos puxa para baixo, e que inclusivamente nos faz não gerar criação, e eu acho que a alegria é também muito importante porque gera criatividade e é um meio para a construção e por isso a importância de nós tomarmos consciência dela.
Uma curiosidade… Vamos ouvir o tema “Ballerina” (1947) no espectáculo?
Não [risos] Ainda considerámos, mas não.
E falando nos figurinos… Porquê Aleksandar Protic?
Eu trabalho com o Aleksandar há muitos anos, ele conhece muito bem o meu trabalho e eu conheço o trabalho dele. Ele é uma pessoa muito versátil e entendemo-nos muito bem. Este lado que tem de juntar em muitas das suas peças um lado de vanguarda com algum aspecto também clássico e de uma elegância…
E os materiais…
É verdade, os materiais são uma das coisas em que o Aleksandar é mestre, e portanto foram essas as razões.
Relativamente ao processo de criação e de trabalho da peça, houve alguma participação dos bailarinos? Em algum momento puderem eles próprios criar ou improvisar?
Não em palco, mas há sempre e eu pretendo sempre esse encontro e essa entrega de ambas as partes. Entrega e dádiva de ideias e de in puts. Estou sempre aberta a isso e proporciono sempre isso. Acho que aqui, com uma companhia destas e com um elenco tão grande, às vezes não há tempo para que coisas se pudessem desenvolver ainda mais, porque eu sinto que os bailarinos também estariam nessa linha de pensamento e interesse. Acho que eles foram muito ao meu encontro, e eu fui muito ao encontro deles.
Há aqui uma linguagem que não é desconhecida para eles, há outra que sim, que tem a ver com uma linguagem muito minha, pessoal, e também há muitas sugestões que eu agarrei, de improvisações, de alguns momentos, de algumas ideias que eles próprios tiveram e que estão incluídas no espectáculo.
E como é trabalhar com Companhias que não a Companhia Clara Andermatt?
Eu não tenho uma companhia, a Companhia Clara Andermatt (ACCA) é uma estrutura. A ACCA vai fazendo audições, trabalhando com bailarinos diferentes e eu também acedo a convites que me fazem de outras companhias e de outras estruturas.
Ao longo dos anos houve um período mais áureo da dança, a nível financeiro, etc, em que eu pude manter durante vários anos bailarinos – e isso é muito bom, porque se consegue desenvolver um trabalho e uma linguagem em conjunto, em comum. Infelizmente são poucas as companhias, aqui em Portugal, que têm um elenco fixo, porque não há de facto condições financeiras que o permitam. Ter a oportunidade de trabalhar numa casa destas é também muito bom.
Houve alguma maior dificuldade?
Dificuldade… Como trabalho com muita gente diferente, são também estes encontros diferentes que geram riqueza.
Uma última curiosidade: quanto tempo demorou a criação desta peça?
Foram cerca de dois meses.
Estou muito contente com a equipa à minha volta, é uma equipa que conheço bem, que escolhi para me dar uma certa segurança. São criadores que são cúmplices e que são extremamente ricos, cada um na sua área: o Miguel nas luzes, o Artur Pinheiro, que acho que fez um cenário fabuloso, e o Aleksandar e o João Lucas,… Uma equipa que me ajudou muito em todo o processo.
E a estrutura em palco está muito engraçada, porque dá para trabalhar de imensas formas…
Sim…
Dance bailarina dance, de 26 de Abril a 5 de Maio, pelas 21h, no Teatro Camões, Lisboa.
Mais informações aqui.
Agradecimentos: Teatro Camões