«Sábado 2», de Paulo Ribeiro, CCB

Originalmente publicado em arte-factos.net, a 12 de Novembro de 2012.

SÁBADO 2
foto: José Alfredo

Nos dias 9 e 10 de Novembro, o Centro Cultural de Belém regressou ao ano de 1995, ao apresentar novamente no Pequeno Auditório a primeira criação da Companhia Paulo Ribeiro, mas com um novo elenco. Sábado 2, como   o coreógrafo afirma, «foi a nossa primeira e muito emblemática obra […]». Uma obra criada para desmistificar o «estereótipo das convenções sociais, a banalidade da palavra e até dos sentimentos, quase sempre fugazes e virtuais.»

 

Bernardo Soares no seu desassossego disse: «Nunca amamos ninguém. Amamos, tão-somente, a ideia que fazemos de alguém. É a um conceito nosso – em suma, é a nós mesmos – que amamos. Isso é verdade em toda a escala do amor. No amor sexual buscamos um prazer nosso dado por intermédio de um corpo estranho. No amor diferente do sexual, buscamos um prazer nosso dado por intermédio de uma ideia nossa.» Não há qualquer referência directa ou indirecta ao Livro do Desassossego ou mesmo a Bernardo Soares/ Fernando Pessoa nesta obra de Paulo Ribeiro, mas ao ler o texto de apresentação do espectáculo (ler aqui), recordei-me imediatamente destas palavras. Parecem-me adequadas de se aplicar a uma obra que «é essencialmente egoísta», em que «o outro existe para dar relevo às nossas fantasias» e assim «compadecemo-nos a pensar que sofremos de amor, mas tal não passa de imaginação e convenção social». E é mesmo aí que entra o texto na peça: «amo-a com todo o fulgor da minha alma», frase sofregamente repetida em voz alta, entre tantas outras. Repetida para tentar desmascarar ou mesmo ridicularizar o amor romântico. A reacção da amada na primeira vez em que estas palavras são ditas não podia ser a menos esperada: gargalhadas.

Mas voltando a Bernardo Soares, este continua… «As relações entre uma alma e outra, através de coisas tão incertas e divergentes como as palavras comuns e os gestos que se empreendem, são matéria de estranha complexidade. No próprio acto em que nos conhecemos, nos desconhecemos. Dizem os dois ‘amo-te’ ou pensam-no e sentem-no por troca, e cada uma quer dizer uma ideia diferente, uma vida diferente, até, porventura, uma cor ou um aroma diferente, na soma abstracta de impressões que constitui a actividade da alma […]» É neste sentido que Paulo Ribeiro tenta «explorar o turbilhão vazio do indivíduo virado essencialmente para si próprio, tomando a ligação com o divino como espécie de energia redentora», em que exercícios de automutilação servem como penitência de uma vida. A crítica à repressão daspulsões, como diria Freud, materializada em gemidos que se transformam na música ao som da qual se dança, onde a citação em voz-off de lirismos românticos até que as palavras se atropelem umas às outras se torna um som imperativo, está presente em toda a peça. O amor é assim revisitado como um campo de batalha: casais lutam, testam forças, procuram um vencedor, mas no fim, só encontram consolo no vazio da solidão.

«O trabalho de autor não se esgota no impacto maior ou menor que as criações possam ter no momento em que são criadas. A Dança é das artes que mais sofre o efémero. Este princípio precisa ser contrariado, não só porque muitas obras precisam de tempo para serem realmente apreendidas, como também porque é essencial poder rever o que está para trás, para situar melhor o presente.», acrescenta o coreógrafo. Não é por acaso que no título das críticas de espectáculo não coloco a data. A intemporalidade de uma obra pode ser vista como utópica, porque o contexto da sua criação e o da sua recepção podem ser completamente diferentes. No entanto, é a capacidade que as obras têm de se reinventarem, de se re-contextualizarem no momento em que são re-apresentadas, e assim contarem ao público sempre algo de novo, que está uma parte significativa do seu valor. Sábado 2 é, nesse sentido, intemporal. Em 1995 contou ao público uma história. Em 2012 contou uma outra, ainda que da mesma forma. As paredes do Pequeno Auditório saberão distingui-las.

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